Cantor e compositor baiano traz de volta a SP o show 'Zii e Zie' e fala sobre Brasil, violência, eleições...
Sonia Racy, de O Estado de S. Paulo
RIO - À exceção de alguns momentos mais incisivos, Caetano Veloso deixou claro, na entrevista ao Estado, semana passada, na sede da Natasha Produções, no Rio, que a maturidade lhe subiu à cabeça. Uma boa sabedoria emerge, fácil, da sua tranquilidade interior. O posicionamento rebelde do início da carreira, que às vezes assumia as cores da esquerda, deu lugar, hoje, a um discurso racional, realista. Que nada tem, no entanto, das desilusões de quem perdeu a esperança - e isso transparece, com força, quando anuncia sua opção pela candidatura de Marina Silva. "Não posso deixar de votar nela. É por demais forte, simbolicamente, para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro. Ela fala bem."
Sobre as mudanças propostas na Lei Rouanet, Caetano se esquiva: " Eu sou daquelas moças... não estudei direito", diz o artista que, na era da tecnologia, não usa sequer o celular, não gosta do Twitter, mas se comunica sempre por e-mail.
E cadê as novas pessoas com a força do talento de um Caetano, um Gil ou Chico? O mundo hoje é de gente pré-fabricada pelo marketing e meios de comunicação? Nada disso. Para Caetano, houve uma mudança tecnológica imensa e também desdobramentos históricos. "Fico me perguntando: aqueles pintores que ficaram famosos, foram mais sagazes em seduzir príncipes ou reis, ou eram mesmo os mais talentosos? Ou foram os que combinaram melhor as duas coisas? Ou os que tiveram a sorte de encontrar um príncipe que gostou deles? A diferença hoje passa por outros canais." E isso é bom ou é ruim? "Nem bom nem ruim, é o que é."
Caetano volta a São Paulo amanhã - por três dias - para seu show Zii e Zie, no Citibank Hall. Que depois, em 2010, transformará em turnê internacional: março pela América Latina, abril nos EUA, julho Europa e talvez Austrália e Ásia em setembro. Só ao final dele é que pensará no futuro de seu futuro. Aqui. trechos da conversa.
Como você vê o Brasil?
Acabei de ler no New York Times que, possivelmente, o Brasil é o País mais importante do mundo para o qual estão voltados todos os olhos do mundo. Não que o artigo todo seja a favor, é até crítico e contra. Mas parte do pressuposto de que o Brasil é um êxito histórico aos olhos deles, estrangeiros, muito maior do que a gente imagina. Partem do pressuposto de que o Brasil é algo grandioso e falam justamente sobre as provas de que o País não superou o que há de horrendo nele. Se referindo à derrubada daquele helicóptero por traficantes no Rio, à violência, e a uma passividade do Brasil em relação às finanças internacionais, como que dizendo que o País deveria liderar uma virada nessa questão.
E você, o que acha?
Sempre achei que o Brasil é um país com destino de grandeza e uma originalidade fatal.
O que é uma "originalidade fatal"?
Somos um país de dimensões continentais, cujo povo fala português nas Américas, com uma população altamente miscigenada... São muitos fatores estranhos... O português é considerado assim o "túmulo de espírito". O próprio padre Antonio Vieira disse isso da língua. No entanto, essas desvantagens apontam para uma originalidade enorme, que a gente pode ou não aproveitar. Então eu gosto, por exemplo, de uma entrevista do (ex-ministro) Mangabeira (Unger) no Estadão sobre a Amazônia, em que ele diz que o Brasil devia fazer dela uma experiência de vanguarda tecnológica e de desbravamento de atitudes com relação ao desenvolvimento sustentável. Uma coisa de grande ambição, experimental. Acho que essas visões é que apontam para a verdadeira vocação do Brasil. É assim que eu penso. E olhe que minha candidata à Presidência é Marina Silva.
Você já escolheu?
Pode botar aí. Não posso deixar de votar nela. É por demais forte, simbolicamente para eu não me abalar. Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é uma cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro. Ela fala bem. Mas olha, eu concordo com o Mangabeira sobre a vanguarda tecnológica e o desbravamento. Parece uma contradição? Mas é assim.
Talvez não seja. Em nenhum momento o Mangabeira fala em destruição, em uso não sustentável...
Não sei se a Marina diria dessa forma. E acho que há, sim, uma tensão da posição dela em relação à de Mangabeira, embora ela seja a minha candidata. Se ela for, voto nela, com a esperança de que ela, com sensatez que sempre demonstra, acolha a complexidade da realidade. E, no poder, seja mais pragmática que Lula. E mais elegante, o que já é.
A Marina teria condições de gerir um país deste tamanho?
Acho que ela é muito responsável e muito sensata. Se empenhar as energias para ganhar e se tornar capaz disso, ela levará a sensatez ao ponto de poder gerir. Suponho que agora ela não parece ter essa capacidade, com as coisas como estão.
Serra faria um bom governo?
Pode fazer. O Serra foi um excelente ministro da Saúde. Agora, ele é o tipo do cara que, se tivesse ganho no lugar de Lula, em 2002, teria trazido mais problemas à economia brasileira. Ele teria feito um governo mais à esquerda e a economia talvez tivesse problemas que não está tendo porque o Lula fez a economia de direita. E ouve os conselhos de Delfim Neto, que o Serra não ouviria. O Lula foi mais realista que o rei. Foi bom, a economia deslanchou.
E Dilma?
Não tenho ideia. Ela tem um trabalho de pura gestão, mas sem experiência de poder político direto. Ela nunca foi eleita a coisa nenhuma.
A Marina tem?
Ela tem. Os candidatos são todos de nível bom. Vou falar em Aécio, de quem eu gosto muito. Talvez seja meu favorito entre os gestores. Porque acho que o Serra talvez ficasse mais isolado que o Aécio. E a Dilma talvez ficasse muito presa ao esquema estabelecido de ocupação dos espaços estatais pelo governo do PT.
Qual a função do Estado no processo de desenvolvimento?
Não tenho uma ideia precisa. Simpatizo muito com a tradição liberal inglesa e anglófona. Mas não me identifico plenamente com a ideia de Estado mínimo, de liberdade para as transações.
Antes da crise econômica, você era a favor do Estado mínimo?
Não. Eu tinha uma certa raiva daquela onda de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, embora simpatize com o liberalismo de língua inglesa. Sempre me vem à cabeça a ideia de que a Margaret Thatcher estaria dizendo algo do tipo "eu privatizaria o ar, se pudesse..." Acho que ela chegou mesmo a dizer isso, pelo menos corre a lenda a respeito. E quando eu vejo essa gente dizer que a única coisa que deve mover as pessoas é o desejo de lucro tenho vontade de me agarrar em São Francisco de Assis, entendeu?
O Estado tem que mexer na Lei Rouanet?
Não sou muito bom nesse negócio. Sou como umas moças que eram bonitas e apareciam nuas nos filmes, e tinham de ter uma opinião política. Eu sou assim. Não sei se tem que mudar. Fico com pena do leitor de jornal, quando sai assim "a excursão de tal cantora foi recusada", ou "foi aprovada", ou ainda "pode captar". Para música popular, o máximo da captação é 30%. Mas 30 % de quê? O público lá sabe o que é isso? Para música clássica, pode chegar a 100%... Mas repito: eu sou daquelas moças... não estudei direito.
Mas voltando ao Estado brasileiro, ele é eficiente?
Meu pai foi funcionário público, dedicadíssimo à sua função. Embora estatísticas provem o contrário, ele contrariava as estatísticas. Então eu tenho uma ideia de que o serviço público pode ser amado, a pessoa pode dar todo seu sangue àquilo. E que não apenas o lucro capitalista é a única motivação.
O Estado deve ser um regulador...
Justamente, a ideia é essa. Que ele seja o regulador do equilíbrio de forças. Os governos têm de se submeter à lei, para estar representando o Estado.
Mas é o problema: cumpre-se a lei?
Não, muitas vezes não. Mas esse negócio de Estado muito forte não me atrai. Acho que ele tem de ser firme, mas não tem de ser um Estado de força. A lei tem de ser nítida, obedecida por todos, em primeiro lugar por quem manda. Ele não tem de se meter, tem de regular, para criar um equilíbrio. Agora, é preciso saber se os seres humanos têm essa saúde mental para querer que as coisas funcionem assim. A vida é complicada, dolorosa, difícil, as pessoas na verdade vão para atitudes muito irracionais... Sabe quem eu acho que tem o discurso mais interessante sobre como a gente, em coletividade, se comporta e como é complicado ter esperança? Freud. Acho que Freud fala de modo mais interessante sobre possibilidades do homem como ser social, do que os marxistas e do que muitos liberais. Pessoas não podem ter esses poderes enormes.
E o que acha da América Latina? No que ela está se transformando com pessoas que têm esses poderes enormes?
Tem uma recaída num negócio que é tradicional aqui, a figura do líder populista - uma linha demagógica liderada por Hugo Chávez. Mas o interessante é que Lula tem um papel bem diferente disso. Lula é um grande líder populista, mas é mais pragmático - mesmo com essa euforia em que entrou desde a posse até hoje. Ter tido Fernando Henrique e Lula em seguida é um luxo. Saíram melhor que a encomenda, ambos.
O Rio tem um desafio, de se pôr em ordem até 2016. Vai dar?
Ele tem de conseguir alguma coisa. Eu li na semana passada, no The Economist, que um dos agravantes para o Rio é o relativo igualitarismo da economia do tráfico. A revista não dá ênfase à derrubada do helicóptero, falam é da economia do tráfico. Que os drug lords do Rio não têm aquela vida de carrões, dinheiro, mulheres... diferentemente do resto da sociedade, onde as diferenças são abissais. A gente devia atentar pra isso.
Algum dia pensou em se mudar?
Não, nunca.
A violência o assusta?
Sempre assusta, até em filmes. Mas não vivo com medo.
As pessoas perderam a capacidade de se indignar?
Não acredito muito nisso. Hoje as pessoas aceitam a violência, o Congresso com essa corrupção toda... O povo não é tolo assim. Hoje há mais exposição dessas coisas. . Então não é que as coisas mudaram, é que elas vieram à tona. Suponho que o povo percebe. Passei um ano no Rio e vi como eram as coisas, não se pode dizer que era melhor. E não se falava muito do assunto. Ele apenas veio à tona. Mas olha, vir à tona é uma melhoria.
Como você se relaciona com a tecnologia?
Sou um pouco parcimonioso. Por exemplo, não tenho celular. Nunca tive. Vivo como se estivesse em 1957. Sei que o celular veio bem depois, mas eu ajo com relação a isso como se fosse 1957. Escolhi esse ano porque é um ano que eu gosto.
E o Twitter?
Twitter não. Eu gosto muito de e-mail.
Caetano Veloso. Citibank Hall (1.450 lug.). Av. Jamaris, 213, 2846-6000. 6.ª e sáb., 22 h; dom., 20 h. R$ 80/ R$ 170
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