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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Reforma ortográfica


Por Mario Persona

Prezado amigo: Circunflexo sobre meu notebook, fui surpreendido por seu e-mail e pelo comentário agudo com acento carioca que, diga-se de passagem, é consoante à sua crase. Você espera que eu trema de sua preposição? Pareceu-me ser essa a tônica do julgamento vogal que fez de minha decisão de adotar a nova ortografia.

Apesar de você tentar pontuar, com acentuado sarcasmo, minha adesão à reforma ortográfica, saiba que isso não me torna um entusiasta da causa. A reação normal, na minha idade, está mais para buscar outro tipo de reforma. Mas, como já não tenho reforma e nem estou reformado, adoto a nova ortografia como forma de garantir meu assento no mercado.

No fundo, o objetivo do acordo ortográfico é acabar com o excesso de letrinhas do português de Portugal. Para que fosse acordo, o Brasil acordou com mudanças mínimas, só pra português ver. O português, que trabalhava de facto, agora irá trabalhar de fato. A gravata permanece a mesma.

Qualquer um sabe que antes de reformar é preciso construir, algo que ainda não foi feito no Brasil e na maioria dos países que falam Camões. A reforma nem será percebida em muitas escolas onde "acento" ainda é sinônimo de cadeira. Vi uma professora de português, que ia se casar, convidar as amigas com um cartãozinho grafado "Chá de Conzinha". Pode apostar que professoras assim adotarão a nova ortografia e passarão a ensinar que o coletivo de aranhas é alcateia.

Para quem digita, as vantagens da nova ortografia são proporcionais aos acentos eliminados. Quantas vezes você precisou voltar ao "u" para colocar o trema? O corretor de meu Word vivia rindo da minha cara com seus lábios ondulados sob a palavra. Agora sou eu quem ri. Deixei o Word de lado e adotei o Writer do BrOffice, pelo menos até a Microsoft, corrigir seu corretor. O Bill Gates deve estar preocupadíssimo com minha decisão.

Não aguento você arguir que usamos pouco o antiquíssimo trema. Isso é consequência da obliquidade de seu julgamento exíguo de minha linguística. Ainda que eu enxágue meus textos da vã eloquência, até mesmo um delinquente, um alcaguete ou um equino sabe que é inexequível um texto sem trema na velha ortografia.

É inegável que a reforma movimentará o mercado para adaptar tudo e todos aos novos tempos ortográficos. A falta de informação criará situações inusitadas, como a da empresa que há alguns anos teve sua importação barrada por um funcionário da alfândega. A documentação, preenchida no exterior com caracteres não acentuados, indicava a importação de "macas", mas as caixas traziam "maçãs". Portanto, não se surpreenda se encontrar algum "adevogado" por aí querendo processar, por assédio sexual, quem entrar na secretaria. E também por agressão, se bater antes de entrar.

A eliminação dos acentos acentuará o ganho das agências de comunicação, que prestarão serviços de correção dos textos de seus clientes em sites e material impresso. Publicitários e gráficas ganharão com a reforma geral das embalagens de seus clientes. Ainda vamos ver embalagens de linguiça com "Zero Trema". E por que não, se até embalagem de água já traz "Zero Caloria"?

Ainda vamos ver na TV entrevistas com "especialistas" sobre os benefícios de se comer linguiça sem trema:

Entrevistadora: "Você acha que a venda de linguiça sem trema será obrigatória em nosso país?"

Entrevistado: "Bem, caso isso aconteça, o Brasil poderá importar o produto de Portugal até adaptar sua produção. Os portugueses sempre fabricaram linguiça sem trema".

A reforma ortográfica trará problemas para alguns segmentos na hora de vender seus produtos. É o caso dos fabricantes de para-raios. Aquilo que antes servia para parar os raios tornou-se um aliado deles. Os familiares de paraquedistas já não poderão processar o fabricante do equipamento que não abriu. Afinal, apenas a versão antiga tinha a função de parar quedas. A nova é feita para elas acontecerem.

Apesar de não saltar, me preocupo por viajar muito de avião, mas não pense que eu trema por isso. A reforma não irá afetar o software das aeronaves, que é escrito em inglês sem acentuação, evitando assim um "Bug do Milênio" só nosso, tipo "Bug do Português". O problema está na fila. Em um país onde o acesso a uma boa educação foi atropelado pelo acesso a um maior poder de compra, imagine as filas nos balcões das companhias aéreas, com as pessoas querendo saber se precisarão viajar de pé no voo que perdeu o acento.

Fonte: http://www.mariopersona.com.br/cafe/archives/00000244.htm

PS: o melhor texto sobre a reforma que li até agora.

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